Vocês não sabem o que é ser um crente, de esquerda

Por Anderson França


Bom dia esquerda carioca,

eu, protestante, chamado por vocês de evangélico, quero dizer uma coisa, no amor.

Eu não me importo de ser diminuído como pessoa, seja do ponto de vista cognitivo ou de compreensão da realidade política, como tenho sido nessa página e no meu perfil pessoal, por ser protestante.

Eu, e muitos irmãos meus, crentes, temos sido continuamente diminuídos por vocês.
Mas isso não me importa. E na verdade, nunca importou.

Com 6 anos, minha vó me levava pela mão à igreja, no subúrbio do Rio, passando por católicos, por butecos, por meus colegas que iam jogar bola, iam à praia com a família, mas ela me dizia para olhar para o chão.

Eu olhava para o chão para não ver os sorrisos das pessoas, geralmente de deboche, para e minha vó e eu. Ela, de coque, vestido de tecido grosso, uma bíblia na mão, pernambucana de Caruaru, mãos enrugadas e de fé batista.

Abandonara uma irmandade de Maria, aos 19 anos, e se lançara no protestantismo, os chamados "novos bodes".

Crente. Bíblia. Fanáticos. Vários nomes, ao longo da minha infância. Minha vó e minha mãe, me davam banho, me arrumavam, e lá ia eu, pra igreja, todos, eu disse todos os domingos da minha infância.

Todos.

Não teve parque. Não teve praia. Não teve bicicleta no Aterro do Flamengo. Piquenique.
Era igreja, no subúrbio. Hino. Oração. Sermão.

Eu não me importo com você me rebaixando, porque eu lido com isso desde que aprendi a andar.
Espero que você tenha entendido isso, porque a segunda coisa que vou te dizer é: eu voto na esquerda.

Mas não é por causa da esquerda. Por causa do Freixo. Da verdade que você aprendeu na universidade.
Tenho muita inveja das pessoas que possuem verdades absolutas. Das pessoas que sabem das coisas. Pessoas sabidas.
Eu voto na esquerda, porque antes de Marx, vem Cristo.

Ambos judeus.

Mas eu prefiro o que usava vestido, andava com prostitutas e pecadores. É isso que a bíblia diz: ele andava com prostitutas e pecadores.

Marx é um rascunho, muito do mal elaborado, do que Cristo disse no alto do monte, sobre o Reino de Deus.

O primeiro sujeito a me falar de Reino foi Leonardo Boff. E eu não era mais uma criança. Eu queria entender o mundo, a pobreza. Porque o evangelho do Cristo era para o povo, pelo povo, através do povo.

Boff me ensinou sobre a Teologia da Libertação.
Sobre o camponês, sobre o operário, sobre o povo se tornar livre, porque a liberdade é a mensagem do Cristo. E o Reino de Deus é onde nada falta. Onde homem não explora o homem.

E Deus está onde há relações de amor.

Se os intelectuais discordam disso, eles que dediquem tempo debatendo. Eu me engajei nas lutas de esquerda, e aos 17 anos fui chamado na Igreja Batista de Madureira, onde congregava, pelo meu pastor. E lá, fui duramente repreendido por participar dos movimentos que culminaram no impeachment de Collor.

Acontece que Cristo disse: "Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça. Porque eles serão fartos."
Não há como ler isso, sem pensar que justiça é algo que precisa ser implementado agora. Para o povo nordestino, meu povo, para o povo negro, para mulheres, gays, todos os oprimidos.

Mais: da mansão no Leblon ao barraco no Timbáu. Porque para o Cristo, a opressão começa dentro, de si mesmo, e não no outro.

Cristo, em quem eu acredito, e que para vocês é uma ignorância, é o começo de todas as lutas que implementei na vida. Na Universidade da Correria tem Cristo. Na Dharma ACC  tem Cristo. No TEDxMaré tem Cristo. Na minha casa. Eu não acredito que a verdade seja uma tese, um livro.

Para mim, a verdade é uma pessoa.

E eu sigo, confesso que de forma medíocre, essa pessoa.
Pessoa que foi preso político. Morreu condenado entre criminosos. Sob a pena capital do Estado. Executado, sendo inocente. Bandido bom,é bandido morto. Na forma da lei. Provavelmente, preto. O Messias preto.

Todo sangue que precisava ser derramado para a construção de uma sociedade mais justa foi derramado naquela cruz.
Você não acredita nisso. E eu respeito você.

Mas aqui é desse jeito.
Um líder que deu a sua vida. Não sua sabedoria, sua eloquência nos seminários da UFF.
Amigos de esquerda, vocês são o rascunho mais pobre do Reino de Deus. Mas ainda assim, um rascunho.

Porque eu acredito em algo muito mais justo, belo, amoroso e libertário que qualquer coisa que Marx tenha nos inspirado.
Vocês são a minha aposta mundana. Minha aposta na possibilidade de manter o humano próximo das utopias de Cristo. Marx é apenas um degrau para aquilo que é muito, muito maior: o Reino de Deus.

Onde não há negro, branco, judeu, grego, macho, fêmea, gay, hétero, puta, santa, mas Cristo é tudo em todos. E todos são livres.

Porque eu prego a Cristo, e este, crucificado. O que é um escândalo para vocês, e uma loucura para os intelectuais. Porque um líder precisa matar, não permitir que seja morto. Mas eu sigo o homem que perdeu. Todos os seguidores de Jesus, durante 4 séculos, foram presos e mortos como prisioneiros políticos. Dr. King. Ou seja: de que alienação vocês estão me falando?

Vocês lutam por um Estado justo. Eu, pelo Reino.

Vocês pensam em mudar apenas o mundo. Eu digo que precisamos começar a mudar por dentro. Porque é aí que o bicho tá pegando. E então o mundo.

Porque somos todos desviados da Graça.

Mas quando éramos ainda inimigos de Deus, ele nos enviou Seu Filho. Ele prova o seu amor por nós, pelo fato de Cristo ter dado sua vida por mim, me reconciliando com Deus, quando eu ainda era inimigo Dele. Isso aí é muita treta para sua cabeça, amigo, e eu sei. E respeito. Mas nossas utopias são ainda maiores que as ruas, e de coisas impossíveis de mudar.
O que na verdade não pode parecer impossível de mudar é o coração da pessoa. Porque o resto, tudo é possível.

Entenda:
Não quero converter você. Sua presença na igreja não me interessa.
Quero, apenas, que você pare de desqualificar o voto evangélico, de desprezar a minha inteligência, e principalmente, a vida, a vivência e o amor que meus irmãos tem, mesmo que eu não concorde com eles.

Não concordo com Crivella. Não concordo com Malafaia. Posso combatê-los aqui, diariamente. Mas não desprezo a fé deles. Muito menos das milhares de pessoas que vão às suas igrejas. Milhares. De mulheres, crianças, jovens, como eu.

Milhares.

Que ouvem discursos de ódio. E são, um dia, confrontados com a mensagem de que Deus é amor. E que Deus não fecha com Malafaia em tudo que ele diz. E Malafaia sabe disso.

Porque Malafaia sabe o que é certo, mas prefere o que dá certo.
Mas todos devem dar satisfações a um Juiz.

Meu amigo, não foi Marx, nem você quem me fez esquerda.
Vocês são os gentios que mais se esforçam para criar algo que longinquamente se parece com o Reino.
Por isso eu apoio.

Não agridam os crentes. Se vocês são tão mais evoluídos, não agridam. Se forem agredidos, procurem em Paulo Freire o que fazer. Parem de humilhar a fé dos crentes da Universal. Parem de dizer que os crentes são os culpados por estarmos onde estamos.

Vocês não nos conhecem.
Vocês não sabem o que é ser desprezado por ter uma fé.
Vocês não sabem o que é ter que se manter escondido por ter uma fé.
Vocês não sabem o que é ter que peitar o Malafaia todos os dias, para não ser representado por ele.
Vocês não sabem o que é ser abandonado por amigos de infância, juventude, todo seu convívio social, por optar pelos oprimidos.

Pergunte, quem de igreja fala comigo hoje, das muitas igrejas e amigos que tive.
Muitos defendem milícias. Muitos defendem a morte. Mas eles também são vítimas.

Vocês não sabem o que é ser um crente, de esquerda.
E não sabem o quanto de amor temos pelos nossos irmãos que não enxergam que são usados pela máquina.
Não respeitados pelos crentes, por ser de esquerda.
Não respeitados pela esquerda, por ser crente.

Muitos de nós estamos em presídios. Muitos de nós em hospitais. E não me refiro a quem visita, me refiro ao preso. Ao doente. Somos muitos crentes presos, doentes, excluídos. Pessoas que saem do crime, e se apegam na fé. Tem isso em qualquer outra religião. Religião que vocês desprezam.

Há muitos de nós em conflitos internos, em repertório que nenhum de vocês suportaria. E a maioria dos crentes é pobre. Não tem faculdade na favela, mas tem uma igreja, onde se pode chorar, onde se pode botar pra fora a frustração.

Não elejam Freixo, às custas de tantas feridas no caminho.

Elejam, respeitando os crentes. Ele, se eleito, vai governar para os crentes.

A minha oração é muito sem importância. Mas hoje, eu oro por vocês.

E que possamos construir uma cidade menos desigual.

Fonte: https://www.facebook.com/DinhoEscritor/

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