Alfabetização: sua origem e contexto histórico

Por: Raquel Regina Zmorzenski Valduga Schöninger

Para entendermos a Educação, hoje, e as interfaces com as Novas Tecnologias, precisamos compreender melhor como aconteceu o processo de alfabetização.

É comum pensarmos na alfabetização como o resultado de um período de escolarização, como se essa tivesse nascido junto com a escola. No entanto, a alfabetização é anterior à escolarização.

Conforme Cook-Gumpertz (1991), em um período anterior ao movimento da escolarização, a alfabetização já fazia parte da vida de um número significativo de pessoas, porém o valor atribuído a ela era muito diferente. A alfabetização possuía valor na vida social e na recreação das pessoas, já que a atividade econômica não era seu grande objetivo, pois naquele contexto histórico podia-se viver tranquilamente sem as habilidades de leitura e escrita. A alfabetização não era, a princípio, considerada uma possibilidade de ascensão social. Afinal, eram apenas os nobres que tinham estabilidade social garantida.

A alfabetização do povo foi iniciada pelos religiosos que com o intuito de conquistar mais fiéis utilizavam o catecismo para alfabetizar. No período das reformas religiosas, ocorreu de certa forma uma concorrência entre os reformadores protestantes e católicos pelas escolas primárias, o objetivo era angariar o maior número de fiéis submissos. Assim, o ensino na época, exercido por instituições religiosas, não se preocupava, apenas, em oferecer os rudimentos da leitura e da escrita, oferecia, também, os conteúdos religiosos, instruções morais rígidas, além de pregar o amor pelo trabalho.

Alguns reformadores defendiam que o ensino se desse na língua materna do estudante, fato que, de certa maneira, possibilitaria uma disseminação maior da alfabetização e produziria também a limitação do período de escolarização, já que o latim era pré-requisito para a entrada nos colégios. Essa prática, de ensinar as crianças só na língua materna e não ensinar o latim serviu também como fator de seleção (ou discriminação social), pois era uma prática que acontecia nas escolas primárias frequentadas por pobres. Quer dizer, se por um lado ensinar as crianças na língua materna possibilitou que um número maior delas fosse alfabetizada, por outro lado, sem o latim, elas não chegavam aos colégios.

O ensino de caráter religioso, a princípio, não contava com o apoio dos dirigentes políticos, pois esses viam a alfabetização como uma possibilidade de o povo vir a contestar a ordem vigente. Porém, com os protestos populares do século XVII, que ocorreram em vários locais, atacando as autoridades, provocando uma mudança na posição dos burgueses e nobres, estes começaram a perceber na escolarização para o povo uma possibilidade de controlar essa gente.

No entanto, o dualismo escolar continuava; para os burgueses e nobres uma educação para administrar e, para os integrantes da classe popular, uma educação moralizadora, que tinha como principal objetivo: ensinar o amor ao trabalho, a obrigação da fidelidade ao empregador, ou seja, transmitir aos alunos e alunas pobres alguns conhecimentos apropriados a seu destino de trabalhadores.

De acordo com Varela (1992), inicia nesse período a campanha de domesticação da criança e do jovem pobre. São criadas escolas específicas para corrigir os desvios de educação dos/as filhos/as da pobreza. Cabe ressaltar que as escolas destinadas aos filhos e filhas da nobreza nada tinham a ver com os estabelecimentos de ensino que a população pobre frequentava. Nessas escolas, não eram apenas as atividades e os conteúdos de ensino que eram diferenciados, os castigos e a submissão às ordens também aconteciam de maneira diferente daqueles estabelecidos para a nobreza.

No entanto, no final do século XVIII, início do século XIX, com o crescimento da industrialização, alguns países começaram a optar pela escola gratuita e obrigatória. Nessa nova fase social de urbanização e industrialização, em que a economia deixa de ser agrária e passa a ser em sua grande maioria urbana, o conceito de alfabetização também se transforma.

Nesse novo contexto, segundo Petitat (1994, p.151) “pode-se sustentar que a tecnologia industrial implica conhecimentos dificilmente transmissíveis e aplicáveis sem o recurso da escrita”. Ou seja, o processo de industrialização contribuiu para o aumento da alfabetização em níveis gerais.

Para Cook-Gumperz (op.cit), a escolarização da alfabetização, ou seja, para o povo, num primeiro momento, provocou certo medo nas classes dirigentes. Depois, serviu durante anos como um bom instrumento de produção e reprodução de pessoas educadas para o trabalho, conforme mencionamos anteriormente. A classe dominante que, historicamente, tem encontrado um jeito de reverter a situação em seu benefício, deu continuidade ao processo de escolarização, iniciado pelos reformadores protestantes e católicos em um bom espaço pra preparar mão de obra para as suas indústrias e ensinar aos indivíduos os valores morais e a serem bons operários.

O que mudou foi a quem se devia obediência. Agora não era a “Cristo”, e sim, aos dirigentes de Estado. Quer dizer, a alfabetização oferecida ao povo não os instrumentalizava para que esses pudessem contestar a realidade em que viviam e transformá-la, caso desejassem, deveriam apenas aprender a obediência, a docilidade e o respeito às normas estabelecidas pelo Estado.

Com essa nova consciência em relação à alfabetização, o analfabetismo passou a ser visto como um problema: os não alfabetizados fogem do “adestramento” da escola, o que significa uma diminuição da reserva de mão de obra barata.

E assim, podemos dizer que a escola laica e gratuita foi fundada nos mesmos preceitos das tentativas religiosas e filantrópicas de estender aos pobres o acesso aos bancos escolares, ou seja, dar ao povo os rudimentos da leitura e da escrita, além de ampliar e corrigir uma educação familiar considerada insuficiente. Nessa perspectiva, a escola se caracteriza como uma instância especializada em educação que completa a instrução familiar e outros ambientes de socialização.

Desde sua origem, a escola tem para os “pobres uma escola pobre”, isto é, um ensino superficial com o intuito de garantir o mínimo possível. Muitos estudiosos afirmam que diferentes grupos controlam o ensino primário. No entanto, parece que os objetivos, as ideias, que estiveram presentes não diferem, conforme o grupo que controla. Esses grupos, religiosos, nobres e burgueses, disputam o controle da mesma classe, o povo que tem menores condições econômicas. E o que muda apenas são as estratégias utilizadas para efetivar o objetivo de controle. Esses grupos, em diferentes momentos históricos, organizam as escolas elementares de forma a garantir ao povo nobre um ensino condizente com a sua condição.

Dessa forma, está instituída a alfabetização que garante a aquisição de habilidades mínimas de leitura e escrita e, ao mesmo tempo, educa o indivíduo pobre para o amor ao trabalho e a obediência aos governantes.

É importante destacar que, embora esse processo remonte tempos idos, ainda hoje, algumas práticas conservadoras permeiam a sala de aula e a instituição escolar. Ações como o castigo pelo mau comportamento e o prêmio pelo bom comportamento para servir de exemplo aos outros/as alunos/as.

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